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sexta-feira, 3 de junho de 2011

Não vou nem morto


As terras ficavam no sudeste de Minas. Terras é exagero de minha parte. Era um roçado. O roçado de Messias. Homem bom, quarenta e cinco anos. Envelhecido pela lida de muitos anos na roça. Desde que era menino já trabalhava capinando mato e arando terra. A enxada era a continuação de seu braço. Bem talhado e com a pele vincada e ressequida pelo uso, como as rachaduras do cabo da enxada.
O único desejo de Messias nessa vida era ver os filhos doutores. Mas que raio de vida! Tá ficando difícil de conseguir isso!, ansiava.
Pobre homem! Os dias eram como qualquer outro dia. Todos iguais. Acordava muito cedo, quando o sol nem havia nascido, pegava seu braço-enxada e rumava para a roça. Antes, Justina, sua esposa, lhe preparava a matula pra mode ele se alimentar na hora da fome. A água? Bebia na fonte. Passava nos fundos da sua roça um riozinho besta mas o bastante para prover toda a família. Essa era uma bênção de Deus, com certeza!, pensava Messias.
Justina já não guardava a beleza dos tempos de mocinha. Ainda nova casara-se com Messias, na esperança de dias melhores. Moça da cidade, embora afeita ao trabalho desde cedo, a roça a castigou mais que o tempo seria capaz de realizar em tanta formosura. Vincos apareceram cedo na face, roubando-lhe o viço e o frescor que só as moças do interior possuem pela vida pacata e saudável.
Justina e Messias só tiveram três filhos. Roberto, com treze, acompanhava o pai no roçado após chegar da escola de manhã. Juliano, onze, cuidava do galinheiro, dos porcos e a da vaca. E a linda Lindaura, com seus sete anos, ajudava a mãe nos afazeres domésticos e no cultivo da horta. A pobrezinha ainda não ia para a escola, mas era muito danadinha de esperta.
Assim pensava Messias em sua vida. Deixava suas lembranças lhe banharem o pensamento enquanto descansava à beira do riozinho. Ouvia o vento no balançar da folhagem abundante à sua volta. Roberto cochilava ao seu lado e isso o levou a viajar em sua memória, até a adolescência.
Menino, muito magro, porém forte, não tinha tempo para folguedos infantis, o pai partira cedo deixando viúva e cinco filhos. Messias assumiu a responsabilidade pelos cuidados com o sítio da família, com o sustento dos irmãos e da mãe. O tempo passou devagar, assim como os dias transcorrem lentos em lugares distantes do meio urbano.
O rosto de Justina lhe veio à mente. Lembrou-se de como ela era bonita quando a conheceu. Numa tarde precisou ir até à cidade comprar mantimentos para a despensa vazia. Ao passar de bicicleta em frente à loja de tecidos, avistou uma linda moça atendendo uma cliente. Freou a bicicleta. Apeou-se dela como se estivesse montado em um cavalo. Aprumou-se, passou as mãos ajeitando seus cabelos e adentrou a loja confiante, com passos bem ligeiros. Lembrou-se de repente que não havia pensado em uma desculpa para puxar prosa com a moça. A coragem esvaía-se a cada passo que dava. Queria voltar mas já era tarde. O que dizer, meu Deus?, valei-me Nossa Senhora! É agora ou nunca, pensou. A moça lhe sorriu dando a perceber que notara a sua presença. Vixe Maria! E agora? O que faço? A moça lhe tirou desse emaranhado de pensamentos e cumprimentou-o gentilmente, oferecendo ajuda.
─ O que deseja?
Gaguejando, ainda em busca de palavras, despejou as que vieram de pronto à sua cabeça:
─ Farinha, polvilho, pra mode levar pru sítio.
A moça sorriu de novo e timidamente colocou as mãos diante dos lábios, de vergonha pelo mau jeito de Messias.
Delicadamente, sem querer constrangê-lo, indicou o armazém mais à frente. Mas antes de se despedirem, ele perguntou o seu nome.
─ Justina!
Um mês depois de tantas pedaladas em frente à loja de Justina e um breve aceno de cabeça, encheu-se de coragem e pediu o consentimento dela para acompanhá-la até a casa. Nesse primeiro encontro, mais demorado, puderam se conhecer um pouco melhor. Justina, muito à vontade ao seu lado, falava mais. E ele, encantado e tímido ao mesmo tempo, a ouvia só mexendo a cabeça, como a concordar com tudo que ela dizia. Essa é a mulher que quero para minha esposa, reconheceu.
Depois de um ano desde o primeiro encontro desajeitado na loja de tecidos, Justina e Messias se casaram no cartório da cidade. Com algumas economias, Messias comprou um sítio para ele e Justina morar. Seus irmãos assumiram os cuidados com a mãe e a terra da família.
Realizado o humilde casamento, os dois montaram na bicicleta e rumaram para a casinha simples mas bem caprichada na arrumação. O fogão a lenha no canto da sala aqueceria muitas noites frias. Na sala, um lampião a querosene; outro em frente à casa, pendurado numa majestosa mangueira, para guiar a volta da roça no fim do dia de Messias. Justina o esperava com o caldo quente na cumbuca sobre a mesa. Messias voltava sempre ao cair da tarde, para evitar as cobras pelo caminho.
Um estalo do quebrar de um galho o derrubou dessas reminiscências. Levantou-se sobressaltado. Verificou que Roberto dormia e foi em direção ao barulho.
Com o braço-enxada aguçou todos seus sentidos.
À sua frente um sujeito com uma grande capa preta e um capuz a lhe cobrir o rosto.
─ Tarde!
─ Tarde! O que quer por aqui?
─ Você estava pensando na vida? 
─ Como sabe? Quem é você?
─ Só pra eu me certificar: qual é a sua graça?
─ Messias. O que faz aqui no meu sítio?
─ Calma, homem; logo vai entender.
Messias sentiu um calafrio percorrer a coluna. A enxada de repente se soltou de suas mãos. Sentiu que boa coisa não era. Emudeceu de uma vez. Não conseguia articular nem uma palavra sequer. Seus pés plantaram no chão. O sujeito se aproximou mais dele e lhe sussurrou ao ouvido; Messias gelou.
─ Então só mais um mês? Não tem jeito de negociar o prazo?
─ Daqui a um mês voltarei.
Assim como apareceu, desapareceu. Assustadoramente.
Messias saiu a custo do lugar e voltou cambaleante para perto do filho.
Seus olhos se encheram de ternura e pena dele.
Não poderia contar para o filho, muito menos para Justina.
Teria que pensar e resolver isso sozinho.
Acordou o filho dando ordem de juntar tudo para voltarem para casa.
Roberto não entendeu nada, mas tratou de obedecer ao pai.
Messias demonstrava, além de pressa, uma agonia em seu semblante. Mais parecia que havia visto um fantasma. Correu para ajeitar as coisas e saiu atrás do pai.
Messias apressava o passo. O pensamento dando voltas. Enrolava e desenrolava qual um novelo de barbante. Como vou me safar dessa?
De repente estancou no caminho. Roberto deu de cara com as costas do pai, derrubando tudo que carregava.
─ Filho, vai na frente e chama sua mãe. Diga para ela vir sem demora.
O menino disparou pelo caminho. Chegou a casa esbaforido, mal conseguindo falar.
Ao longe Justina avistou Messias caído no caminho.
Ela gritava por socorro. Os filhos vieram e desesperaram, chorando. Com custo carregaram o pai para casa e o colocaram sobre a cama. Nada de ele acordar.
─ Tá morto, meu Deus!
Um estranho logo apareceu na porta do quarto de Messias e Justina. Vestido com uma capa preta e um capuz que lhe cobria o rosto, foi entrando até à beira da cama. Não viu a respiração no peito de Messias. Olhou para todos os lados como a procurar por algo, mas não viu o que queria.
─ Diacho, morreu e a alma escafedeu!
Saiu furioso derrubando tudo pela frente. Justina e as crianças não entenderam o que tinha se assucedido.
Olharam para Messias e tomaram um susto ao vê-lo sentado na cama, como se nada houvesse acontecido. Messias abriu os braços para os filhos e a mulher o abraçarem. No meio de tantas lágrimas, ele, mais calmo, reuniu todos na sala e começou a contar como enganara a Morte se fingindo de morto.
A encomenda estava perdida por aí.