Já não aguentava mais a pressão da rotina da casa.
Me encontrava presa, encarcerada pelos modos e costumes daquela velha família. A família cheirava a mofo quadro de natureza morta que o senhor da casa pendurou na parede como melhor expressão de arte que retratava a alma daquela gente.
Essa família de aspecto bolorento e estático não se renovava. Entravam novos membros e todos apodreciam junto aos antigos.
Eu estava lá há vinte anos trabalhando para ela como cozinheira. Meus companheiros, velhas panelas e tachos encardidos e, por amante o fogão carcomido pela ferrugem.
Os hábitos dessa família chegavam ao meu domínio me transmitindo a apatia e desilusão.
O senhor, a senhora, filhos, genros, noras e netos. Um amontoado de sobreviventes do tempo que fugia pelas frestas da janela na saída dos ventos.
Eu sentava no final do dia, a debulhar as favas de feijão nos degraus da porta da cozinha. E a única paisagem que minha vista alcançava era um pequenino ponto azul no céu entre as copas das árvores do quintal.
Meu sonho ia se perdendo em cada grão de feijão que eu separava.
Um dia eu iria embora dessa casa rumo a um novo destino.
Esse dia estava perto. Eu podia sentir um traço de esperança em meus pensamentos.
Um fato veio impulsionar para que isso acontecesse.
Pela manhã ouvi a campainha da porta. Era o carteiro com um telegrama endereçado a mim.
Para mim? Quem me escrevia? Por que eu? Quem sabia da minha existência?
Abri nervosamente o envelope. Mal consegui ler o que estava escrito.
Embora, sem muito estudo, podia ler. Pouco, é verdade.
Pausadamente fui lendo e custando a acreditar no que estava escrito.
Foi difícil realizar meus serviços na cozinha. Meu coração palpitava. E a todo instante suspirava.
Celina,
Hoje você tem um encontro marcado comigo. Saia de casa às quinze horas. Pegue o ônibus na Praça da Sé rumo à Vila Nova Consciência e desça na parada Paraíso. Estarei lá te esperando. Sua vida vai mudar.
A mensagem não estava assinada. Me preparei para tomar o caminho sugerido. Não pensei mais sobre aquela casa. Juntei meus poucos pertences em uma trouxa e me pus a caminho para a Praça da Sé.
Lá peguei o ônibus indicado no telegrama. A medida que me dirigia para o destino meu coração acelerava.
Cheguei à parada Paraíso conforme combinado. Desci. As pernas bambas mal conseguiam me sustentar em pé.
Fiquei procurando pela pessoa que disse estar me esperando. Não vi ninguém. Ninguém que me procurasse.
Sentei-me na parada e esperei. Enquanto esperava fui pensando nos vinte anos que havia estado naquela casa. As crianças que vi crescerem, se casarem e terem filhos.
Cheguei àquela casa ainda menina. Raquítica e assustada. E cá estava eu assustada e ainda raquítica. Me dei conta que não tinha para onde ir.
As pessoas passavam por mim e olhavam-me como se enxergassem um fantasma. E eu devia ser mesmo. Apenas o espectro de um ser humano em busca de si mesmo.
Após longo período de espera, desanimada e desamparada pensei que devia voltar.
Mas era tarde. Não passava mais aquele ônibus. Ele não fazia a mesma linha de volta. Era uma viagem só de ida.
Me deixei ficar. Havia de surgir uma saída. Um outro caminho.
Mas quem me chamou? Não sei.
Mas estou livre daquela casa. Pra lá não volto.
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